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É POSSÍVEL “SIMPLIFICAR A LINGUAGEM CIENTÍFICA”?

12 de julho de 2010

A “campanha pela simplificação da linguagem jurídica”, embora recheada de boas intenções, pode esconder um perigoso viés, que inclui, entre outros vícios, o menosprezo à figura do advogado.

Por Eduardo Feld – Juiz de direito do Estado do Rio Grande do Norte, mestre em direito e engenheiro eletrônico pelo IME.

Não é de hoje que várias entidades da comunidade das carreiras jurídicas articulam uma campanha que visa ao uso de uma linguagem mais simples nas peças redigidas no âmbito dos processos judiciais.
A iniciativa está longe de ser de todo desarrazoada, tendo em vista que se fundamenta, principalmente, no enraizamento de hábitos linguísticos arcaicos, os quais ainda encontram nichos de adeptos, gerando morosidade, desperdício e até mesmo perplexidade.
Não seria também privado de fundamento que se estendesse esta idéia às outras áreas de conhecimento. Assim, ao lado do “juridiquês”, também deveriam ser simplificados o “economês” e as linguagens usadas pelos médicos, contadores, engenheiros, informatas e técnicos dos mais diversos ramos.
É preciso, entretanto, que os militantes de tal idéia compreendam as limitações – e, sobretudo, os riscos de deturpações – daquela.
Não queremos aqui nos aprofundar no debate que não raro surge em torno do caráter científico do direito e de outros conhecimentos. É preciso, no entanto, rapidamente, apresentar alguns elementos caracterizadores do que se considera um conhecimento científico. A maioria dos estudos neste sentido nos diz que a ciência se caracteriza por observação, método, controle, finalidade e linguagem, entre outros.
Importante, também, no nosso contexto, notar que o caráter científico é visto como justificativa para certas características que são consenso em várias áreas, dentre elas o nosso objeto, como a seriedade com que profissionais devem ser ensinados, formados e treinados para bem desempenhar com sucesso seu mister, na persecução de seus objetivos, que muito têm a ver com uma função de alta virtude social.
Neste diapasão, a “campanha pela simplificação da linguagem jurídica” extrapola seus limites na medida em que ameaça virar lei, obrigando inclusive ao impossível, ou seja, que as sentenças possam ser entendidas por qualquer pessoa.
Façamos uma analogia com a medicina. A bula dos remédios sofreu recentemente uma modificação, segundo a qual, hoje, aquela deve conter uma parte intitulada “informações ao paciente” enquanto continuam presentes as informações técnicas, apenas acessíveis aos profissionais. Ninguém, em sã consciência, advogaria a retirada da bula da informação de que o medicamento possui efeitos anticolinérgicos, simpatomiméticos e extrapiramidais, embora a população em geral não entenda tais termos; isto por duas razões: a mediata, que consiste na idéia de que a medicina é uma ciência, e a imediata, qual seja o fato de que para todo remédio existe um médico que o prescreveu e que tem a obrigaç ão de explicar que efeitos são esses a seu cliente. O mesmo se diga dos diagnósticos, receitas, prontuários, etc..
Assim, a muitos causa espanto o fato de que uma parte leia uma sentença e não entenda se ganhou ou perdeu, mas não se surpreende se necessita do auxílio de um médico para entender um diagnóstico.
Neste ponto, é preciso observar que todas estas questões têm um certo grau de fluidez, mesmo porque quase sempre há grande polêmica em torno das funções e prerrogativas de cada profissional e também em relação a quais as circunstâncias o tornam essencial, sobretudo durante a fase transitória de regulamentação de cada carreira.
Para exemplificar, no Brasil, há certos medicamentos que podem ser comprados até em padarias e ser objetos de propagandas, que devem conter a famosa frase “em persistindo os sintomas o médico deverá ser consultado”. Entre tais remédios, o ácido acetilsalicílico, que pode matar por perfuração no estômago se não tomado adequadamente, e a dipirona, que é proibida em vários países do primeiro mundo, tendo em vista efeitos fatais que pode causar em certas pessoas.
Por outro lado, há não muito tempo, não era necessário possuir formação para advogar, sendo ainda conhecida a figura do solicitador ou “rábula”. Ainda hoje, se discute se é preciso ser advogado para subscrever peças na Justiça Especializada Trabalhista. Ainda temos o exemplo dos Juizados Especiais, que dispensaram a figura do advogado nas causas até vinte salários mínimos, o que causou, na época, certa indignação, por parte dos advogados, que alegavam, inclusive, inconstitucionalidade do dispositivo em face da essencialidade do profissional. Mas por que uma causa de valor menor que um determinado limite dispensa o advogado e a maior o exige? Por que vinte e não trinta ou dez salários mínimos? Será isto uma “dipirona jurídica”?
Enfim, até o momento, pensamos que conseguimos mostrar que o assunto está longe de ser tão simplório como uma “campanha de simplificação” possa dar a entender, sobretudo aos menos atentos, não excluindo destes os nossos legisladores. Uma afirmativa pode ser, entretanto, feita sem hesitação: qualquer um que tenha um problema jurídico deve ter assistência de um profissional, ainda que seja este o funcionário que atende no Juizado ou na Justiça do Trabalho. Vejam que a maioria das petições subscritas por leigos não são por estes elaboradas, o que seria equivalente, na nossa alegoria, a uma automedicação.
Do mesmo modo, é impossível que “qualquer pessoa” entenda uma sentença. Em primeiro porque vivemos num país em que uma expressiva percentagem da população é analfabeta, semianalfabeta ou analfabeta funcional, enfim, muitos de nós não são capazes de compreender texto algum.
Enfim, não há uma campanha pela simplificação dos textos médicos ou econômicos, embora estes não raro padeçam dos mesmos vícios dos textos jurídicos. Este fato está a revelar um possível viés deletério de que tal campanha pode padecer, a despeito de que este não seja o objetivo de seus idealizadores. Este viés se ramifica, entre outras conclusões, às seguintes:
a) Ao aceitar a idéia de que “qualquer pessoa” deveria entender uma sentença, nega-se o caráter científico do direito, uma vez que a linguagem de uma ciência não é de domínio comum do povo, abrindo-se livre caminho para o “achismo”, ou seja, a decisão judicial com base em “opiniões”.
b) Como corolário, homologa-se como se válida fosse a péssima qualidade do ensino jurídico da maioria das faculdades do país, onde os alunos vêem o que (não) estão aprendendo como uma simples práxis resultante de um baú de opiniões de onde se aproveitam as mais convenientes, desprezando-se a metodologia que necessariamente deve servir de matéria prima dos silogismos utilizados.
c) Despreza-se aquele profissional que estudou e trabalhou anos para compreender e aplicar uma ciência, como se este fosse dispensável e seu saber fosse menor que o dos demais profissionais, os quais estão legitimados a usar sua linguagem própria.
d) Faz-se tabula rasa do velho ditado romano, obrigando o juiz ao impossível, pois, definitivamente, sentença para “qualquer pessoa entender” não dá!

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One Comment
  1. SERGIO BRAZ permalink

    É,,,” O TEJE PRESO ” NÃO PODE VINGAR. JÁ TEMOS O ABSURDO CONSTITUCIONAL DE ASSEGURAR-SE AO PRESO O DIREITO DE SABER O NOME DO JUIZ QUE O MANDOU PRENDER(CLÁUSULA PÉTREA) IMODIFICÁVEM POR SIMPLES EMENDA CONSTITUCIONAL. AGORA DAR DECISÕES INTELIGIVEIS AOS PRESOS E DEMANDANTES É DEMAIS… A BELEZA DO DIREITO RESIDE NAS EXPRESSÕES LATINAS E NA LINGUAGEM TÉCNICA , QUE É INTELIGÍVEL PELOS TRIBUNAIS E PELOS ADVOGADOS. AOSE PONTO FINAL. RÉUS VENCIDOS CUMPRE CUMPRIR O MANDAMENTO SENTENCIAL,

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